terça-feira, 2 de dezembro de 2014

A hora dos milagres

Um velho caminhava por Lisboa, andando a esmo, tentado se distrair da tarde que nunca acabava. Sentou-se no primeiro café que encontrou, com mesinhas na rua e pediu qualquer coisa que tivesse cafeína e não tivesse espuma. Lembrava-se desse mesmo café há dez anos, e sentia falta da calmaria que existia então por ali. Agora todas as mesas estavam lotadas apesar de ser apenas três horas da tarde, e ele tivera sorte de conseguir lugar sozinho, a maioria das pessoas dividia suas mesas com desconhecidos. Em sua mente persistia a imagem de apenas algumas mesas ocupadas, muitas delas ocupadas por pessoas a lerem ou a estudarem, ao invés das tecnologias que a maioria utilizava ali. Quase se arrependeu de não ter trazido um livro para ler, no entanto ao se dar por conta da agitação da rua e das pessoas, que mesmo no falar ao telefone não mantinham a voz baixa, percebeu que não conseguiria ler sequer uma página naquele tumulto. Era triste não haver mais espaço nem silêncio. E mais triste era ele não ter para quem voltar.
Pouco depois de sua bebida ter chegado, ele foi distraído de suas divagações por um "com licença" quase mudo, educado, tímido. Assentiu sem olhar o novo companheiro de mesa, ainda a observar os outros que se agitavam no café esquecidos do silêncio. Demorou algum tempo, depois de ter ouvido o movimento da cadeira em sua frente, para que ele olhasse o - a companheira de mesa. Uma moça jovem, ainda mais jovem se comparada com a conta dos anos do velho, silenciosamente lia um livro, parecendo perturbada pelo alvoroço ao redor. Ao sentir que o velho a observava, levantou os olhos e sorriu levemente, voltando à leitura. O velho ficou paralisado, Havia tanta gentileza naquele pequeno sorriso que ele quase voltou a acreditar na bondade de estranhos. Tentou seguir a observar os outros, a pensar no passado, a reclamar do presente, mas volta e meia sentia os olhos escuros da moça pousarem sobre si. E de momento em momento foi ficando impossível não olhar de voltar, não tentar desvendar o que diziam aqueles olhos tão escuros, pequenos, que pareciam tentar desvendá-lo. A transição dos olhares fugazes ao olhar contínuo transcorreu sem que nenhum dos dois o percebesse.
O livro dela jazia fechado e esquecido há tempos quando, num gesto frágil, ela estendeu a mão para tocar a dele. Tudo no corpo dele insistia em recuar, mas sua mão permaneceu imóvel, estremecendo levemente ao toque suave da mão dela. Com um olhar urgente, ela levantou, puxando-o pela mão sem nada dizer, a pedir silenciosamente que a seguisse, e já não havia mais "nãos" no velho. Andaram por algumas ruas, os passos dela crescendo, ele sofrendo quando os passos mais rápidos, algumas subidas, mas a visão das pernas e o vestido que dançava por entre as coxas conforme ela andava apressada pareciam lhe dar um fôlego que ele acreditava perdido para sempre.
A moça o conduziu por uma escada estreita, no fim de uma rua silenciosa e aparentemente inabitada. Ela só largou a sua mão para procurar na bolsa amarela pelas chaves, parecia desastrada a revirar a bolsa e fazer os objetos dentro dela uma bagunça. Arrumou uma mecha de cabelo que lhe caía ao rosto quando finalmente encontrou a chave e abriu a porta, segurando-na aberta para que ele entrasse. Olharam-se por um longo momento de hesitação, como se só agora se dessem por conta que haviam saído do café e não se conheciam. Ele deu o primeiro passo para segui-la sem pensar duas vezes - o pensar jazia esquecido no café.
O quarto era pequeno, era bom. Tudo tinha cores quentes mas o sol das três horas entrava oblíquo ali, era só uma claridade dourada, que não machucava. Isso foi tanto o quanto ele foi capaz de perceber antes que sentisse os lábios macios, quentes nos seus, e fosse surpreendido pela suavidade intensa com que aquela menina o beijava. Segurou-lhe a cabeça e o sentir daqueles cabelos macios entre seus dedos por si só já era um carinho. O vestido foi esquecido ao chão, a cama pareceu se aproximar e não mais que de repente ele estava ali, deitado, com ela dançando sobre si, vagarosa, lânguida, os pequenos peitos brancos a balouçar suavemente com os movimentos das ancas. Os cabelos castanhos deslizavam por sobre os seios, as mãos a repousar no ventre dele...ela por vezes fechava os olhos, sempre em silêncio, por vezes deixando escapar um suspiro sôfrego. Ele a puxou para si e então pôde ver as sardas sobre o nariz, os traços delicados de menina, a intensidade de mulher da vida. Nem antes nem depois do momento extremo ele pôde perceber que ela lhe lembrava de sua mulher, ainda quando se casaram, e nem antes nem depois ela o beijou nos lábios.
A moça deitou em seus braços, ofegante, e nele tudo latejava, tudo fervilhava como ele nem lembrava ser possível. O que mais latejava, no entanto era o encantamento pela delicadeza da moça, pelos mamilos róseos, pelos movimentos suaves, pelo olhar infinito. O vestido de pequenas florzinhas infinitas jazia esquecido no chão, o cinto muito velho, os sapatos que sabiam melhor que eles os caminhos de Lisboa, tudo repousando em paz, tudo em silêncio. Antes mesmo que ele pudesse desejar morrer ali, a moça levantou dos seus braços e andou nua até uma peça contígua, provavelmente um banheiro. O velho ficou imóvel, tentando preservar aquela sensação de imensa quietude plena que estava dentro dele. Entretanto o barulho cotidiano de um chuveiro ligado pareceu desconectá-lo permanentemente desse estado. Sentou-se na cama, a observar as sandálias de salto fragilmente derrubadas, a bolsa no chão, o tapete abrigando tudo do chão frio. Repentinamente, soube que devia partir, que devia guardar tudo aquilo em si apenas ou senão desapareceria, então automaticamente se vestiu e se dirigiu à porta. Hesitou ao entrever a moça a se enxugar sem pressa, porém sabia que era necessário seguir caminho.
Ganhou o dia e o sol o cegou. O ar parecia mais leve, mais fresco do que antes de entrar ali. Estava descendo os degraus quando um homem passou pelo seu lado e bateu na porta atrás de si. 
- Luiza, já chegastes? Luiza, anda!
Não houve resposta. O velho murmurou para si mesmo "Luiza", saboreando as letras, "Luiza" era a dança daquele corpo róseo sobre o dele, "Luiza" era o olhar infinito. Seguiu caminho de volta para casa. E nunca a encontrou.

domingo, 30 de novembro de 2014

(Re)Encontro

 A noite ventava forte, não se sabia se de chuva ou de vento norte, mas ventava. Tanto que os galhos das árvores não cessavam de tocar na janela, tanto que a inquietude do criador era infinita. Até que a noite, em sua inquietude, trouxe a sua porta uma moça. Reconhecia os olhos castanhos, apesar de todo o resto parecer diferente. Seus olhos, cheios de medo, traziam um pedido mudo de abrigo, pedido que ele nunca tinha visto naqueles olhos outrora tão destemidos.
- Tem lugar para você aqui na cama, vem - disse ele, abrindo espaço na cama pequena, mas grande o bastante para abrigá-los. Ela hesitou por um momento e então, timidamente, deitou-se no espaço que os braços dele abriram para ela. Olharam-se em silêncio por um instante: ele sabia que a poesia dele um dia havia preenchido-na com vida e criação, mas também sabia que isso durara pouco e desde então ela já não sabia se deixar perder na beleza das palavras. Na bolsa que ela deixara no chão podia entrever um exemplar de Leaves of Grass e, mais do que isso, o olhar dela lhe dava esperanças. Esperanças que um dia ele a veria feliz novamente, tomada pelo belo do mundo. 
Repentinamente, ela o olhou e disse:
- Como pode alguém ser tão bonito por dentro?

O criador ficou sem palavras. Nos olhos dela a dor era de beleza, de encantamento, não de sofrimento - mais provavelmente de alívio. A única resposta foi puxar o corpo pequeno contra o seu, querendo guardá-la em si, guardar o que eram juntos. Enquanto a noite e o vento continuassem, e os braços não deixasssem de envolver o corpo um do outro, estavam seguros, nada impediria que terminassem o que haviam começado, sonhado. Talvez agora eles aprendessem a recomeçar. Ele beijou a testa dela, que já havia adormecido profundamente, depois de meses de insônia - e embaladas pelo vento, as palavras chegariam até eles. Até que enfim.

sábado, 29 de novembro de 2014

O Teatro Mágico em Santa Maria - 28/11/14

 Encontrei o poeta e perdi as palavras... Ontem cheguei cedo, para a maioria “cedo demais”, mas esse “demais” me proporcionou momentos inesquecíveis – tive a oportunidade de passar mais de hora conversando com seu Odácio Anitelli, pai de Fernando e grande incentivador de toda essa poesia que vemos hoje. Conversamos sobre a vida, sobre a bela evolução musical que O Teatro Mágico (mais especificamente, o Fernando em si) sofreu nesses últimos anos (e digo “sofreu” sim, porque crescer sempre é difícil), sobre a cultura gaúcha, e até mesmo sobre a vida familiar deles, sobre a pessoa incrível que o Fernando sempre foi, sua criatividade desde tenra idade e outras coisas que não cabem relatar a outros, ficam na conversa da tarde ensolarada de ontem.
Parabenizei fortemente seu Odácio pelo Fernando. Por tudo que ele fez, pelas criações dele que tem me ajudado através de tudo e de todos nessa vida, que tem me inspirado e me dado esperança que a poesia, afinal de tudo, prevaleça em mim. Ele ficou emocionado, pediu para eu dizer isso ao Fernando, mas fiquei sem palavras quando ele chegou me cumprimentando, numa alegria, numa simplicidade exemplares. Fernando chegou me cumprimentando, perguntando meu nome, me abraçando forte. Conversamos nós os três por alguns momentos, seu Odácio me olhando, esperando que eu conseguisse transmitir ao Fernando o que eu tinha dito a ele, mas só consegui dizer “obrigada por tudo”, o que fez Fernando sorrir, entre envergonhado e contente. “Vamos fazer uma fotinho?” diz Fernando, e aí penso que já tinha até me esquecido o quão importante era para mim registrar esse momento. Então seu Odácio se ofereceu para tirar nossa foto, e Fernando foi se arrumar, e segui conversando com o pai dele, até que ele tivesse que trabalhar também.

Difícil expressar o que essa simplicidade, o que esse carinho significou para mim. Depois de todos esses anos ouvindo, sendo tocada e inspirada pelo trabalho da família Anitelli, ver eles me tratando com afetuosidade, com essa afinidade, essa proximidade que só a música, a arte consegue construir entre as pessoas que, de outra forma, jamais se conheceriam. Acho que, acima disso tudo, o que mais ficou em mim foi a necessidade latente de sempre seguir em frente, não se apegar aos modelos passados e não tentar permanecer no que deu certo, mas já passou. Criar, ao invés de tentar recriar, e prosseguir crescendo, inovando, encontrando novos meios de fazer com que a poesia sempre prevaleça. Amanheci brilhando mais forte hoje, porque a noite foi de uma beleza esplendorosa – encontrei meus princípios em carne, osso e poesia, conheci gente incrível, fui inundada pela beleza da dança, da poesia e da música. Um muito obrigada, à trupe, aos Anitelli, a todos que fizeram parte da beleza da folia de ontem.